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Obrigado, boa aventura!
Invisível
Clóvis M. Fajardo
Amanhã morrerei e
hoje quero aliviar minha alma. Levo comigo este testamento, de fé e de vida. O
que adianto é verdade; isto, portanto, não pode morrer. Quem não tem mais que
um momento para viver, nada mais tem que esconder. O livre-arbítrio é uma graça
que traz com ela grandes responsabilidades na vida. O segredo é saber morrer.
Eu sabia que esse dia
chegaria, mas não esperava viver para vê-lo se cumprir. Durante muito tempo a
seca devastou esta nação. Quando a água desapareceu de suas fontes, o país ruiu
junto, espalhando o desemprego, a fome, o medo e a revolta. A poderosa capital
paulista tombou quando foi atingida pelo Grande Apagão, que deixou a cidade
para sempre no escuro. Reinaram, então, as trevas, a ruína e o caos. Os poucos
sobreviventes se reuniram em tribos que passaram a guerrear entre si pelo que
restou da água: nosso Ouro Azul. A sede era a arma mais destrutível dessa
terrível guerra, que ficou marcada como Guerra Azul.
Quando eu escolhi ser
parte da tribo Invisíveis, esperava
não participar dos conflitos gerados pela disputa da água. Nossa tribo vivia no
submundo, muitas vezes nas antigas estações do Metrô, sobrevivendo do que
saqueávamos lá fora. Mas a fome nos ameaçava, forçando-nos a invadir o
território inimigo para roubar água e comida.
Desde que a crise da
água devastou o país, deixamos de ser uma república e voltamos a ser terra de
ninguém. Depois que a ONU descobriu que ainda havia vida neste canto esquecido
do mundo, ela passou bimestralmente a enviar seus aviões — Programa Alimentar
Mundial — despejando sobre São Paulo sacos de alimento e água potável. É claro
que as doações salvam vidas, mas o que realmente é necessário é um esforço
internacional para ressuscitar esta nação gigante e dar fim à guerra pela água,
restaurando a paz, pois os aviões só despejam sobre a região central da cidade,
conhecida como Ruínas, território da mais hostil de todas as tribos: os Filhos
da Seca.
Quando Matias, nosso audacioso líder, apresentou
seus planos, recusei participar dessa desventura. Porém, senti-me constrangido e
por isso resolvi me juntar ao grupo que defenderia nosso povo da fome,
encarando dessa forma aquela expedição fadada ao fracasso.
Passamos o dia inteiro próximo à antiga estação de
metrô da Sé. Quando ouvi o avião se aproximar, meu corpo foi tomado por uma
intensa ansiedade, meu coração acelerava conforme o ruído da aeronave
aumentava. De repente aquele pássaro de ferro rasgou o céu e despejou suas
migalhas, que foram se espalhando. Quando os sacos tocaram o chão, corremos
todos de uma só vez. Havíamos planejado bem a ação. Para cada saco de
suprimentos, três homens corriam para pegá-lo. Um carregava nas costas, outros dois
protegiam. Mas não esperávamos o que sucedeu depois.
Os Filhos da Seca
apareceram — como já era esperado — e iniciou-se o conflito já previsto. Socos,
pauladas, pedradas de ambos os lados. Diante das paredes da Catedral da Sé o
sangue cobria as ruas. Éramos quinze contra mais de trinta Filhos da Seca.
Porém, nenhuma das duas tribos esperava a presença de uma terceira tribo nesse
conflito.
Bem, não era uma
tribo, pois era mais organizada. Vestia traje militar azul, capacete, escudo e
estampava o brasão da Organização das Nações Unidas. Estávamos diante de uma
emboscada planejada por aqueles que nos ofereciam alimentos. Então eu percebi
que a mão que afaga é a mesma que apedreja.
Caminhavam em nossa direção marchando e batendo
seus cassetetes nos escudos, uma sinfonia que só do inferno pode se erguer,
como os passos do predador se aproximando da presa. Enfrentá-los era inútil, e
até mesmo os Filhos da Seca partiram em retirada. Eu já estava com um daqueles
pesados sacos nas mãos, quando vi se aproximando um dos soldados da Tropa Azul.
Eu tinha que escolher entre largar o saco de suprimentos e fugir em segurança,
ou tentar fugir com o saco, correndo o risco de ser pego. Escolhi o mais
difícil, pois tinha a esperança de levar alimento para minha tribo. Aquele
instante tornou-se a minha condenação.
Ainda corria desgovernado quando senti uma forte
pancada na cabeça. Tudo escureceu e minha última lembrança foi Matias correndo
em segurança. Meu companheiro estava salvo. Eu não...
Acordei num lugar
estranho. Sozinho. O vento ríspido tocava meu rosto lembrando-me de que ainda
estava vivo, mesmo sem motivo para viver. Minha velha roupa havia sido
substituída por uma espécie de uniforme azul. Olhei para meu braço e fui tomado
por um grande apavoramento. Uma cicatriz no pulso direito me deixou
angustiadamente aterrorizado. Eu já tinha ouvido falar dos marcados;
agora eu era um deles. Aquela marca no meu braço indicava que eu havia recebido
um microchip. Eu já tinha lido alguma
coisa sobre os microchips há muitos
anos. Seria vigiado pelos homens da ONU, que me usariam como isca para chegarem
até o resto da tribo e os capturar para depois marcá-los também, tendo assim um
total domínio sobre nós. A Nova Ordem Mundial era real. A Guerra Azul era só o
princípio para instaurar a ordem através do caos e obter o controle absoluto da
população.
Eu estava condenado a
vagar sozinho pelo mundo, correndo o risco constante de ser pego por um dos
Filhos da Seca que certamente me matariam. Desolado, vaguei nas primeiras horas
sem noção do que fazer, sentindo-me um pássaro capturado, engaiolado num canto
da cidade e depois solto em outro. Nas soturnas ruas, só era possível ouvir o
som dos meus sapatos lentamente se arrastando e se diluindo na escuridão.
Quando me dei conta,
estava num beco sem saída. Estava ali, atravessando, sozinho, uma região
isolada e triste. À minha frente, o prédio nu de construção simples com as
janelas — anos atrás arrombadas — como olhos vazios convidando-me a entrar
naquele sombrio lugar. Uma ideia arriscada me veio à cabeça. Talvez fosse a
única saída.
Adentrei o recinto.
Uma antiga oficina mecânica. A pouca luz só servia para indicar um caminho
confuso em meio à enorme desordem em tudo. Tudo respirava um ar de tristeza,
esta que me envolve, pairando sobre o local que há anos permanece sem vida.
Quando meus olhos se acostumaram com a escuridão, comecei a revirar o local à
procura de algo que pudesse me livrar da minha angústia. Sinto como se eu
tivesse substituído minha alma por um pedaço de metal. Uma diabólica maldade,
longe do meu livre-arbítrio. O coração acelerado me fez sentir o sangue
pulsando intensamente, passando pelo meu punho condenado.
Revirei o local e
confesso que poderia viver ali por um tempo. A sensação de ser vigiado, porém, não
deixava minha cabeça e nesse lugar, no entanto, nada parecia apropriado para
dar fim a minha angústia.
De repente escutei um
barulho, como se alguém dividisse o lugar comigo. O ruído de algo que caiu no
chão me fez enxergar um objeto metálico — enferrujado — mas suficiente.
Precisava de mais algumas coisas para completar meu plano. Entre os objetos
esquecidos neste fúnebre lugar encontrei um castiçal com um toco de vela. Esta
é a única luz que tenho e por isso devo ser breve. Encontrei também esta caneta
azul e um caderno de páginas amareladas. É nele que faço minhas últimas
anotações. Já tenho tudo pronto ao meu lado, e só me falta a coragem. Já reservei um pano, uma faixa, álcool e o
serrote. Olho o meu pulso e ele ainda pulsa. Será a última vez. Deixarei aqui
um pedaço de mim. Depois abandonarei este túmulo e, livre da condenação da
minha alma, caminharei pela cidade, outra vez livre. Com sorte, chegarei com
vida até minha tribo, ou tombarei pelo caminho. Se por acaso você encontrou
esta carta ao lado do meu corpo, entenda por que eu mesmo fiz isso comigo: para
voltar a ser invisível.
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